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A educação jurídica e popular para os direitos humanos
Data de publicação: 11-01-2017



Vera Leonelli

O agravamento, hoje, das ameaças e violações aos direitos, requer grande investimento na construção de uma política humanizadora. A educação política, educação popular, educação comunitária, educação social são expressões utilizadas para referência ao tipo de investimento político que nas ultimas décadas tomou corpo e apresentou resultados de fato emancipatórios.

 

É principalmente no âmbito da sociedade civil organizada - representada especialmente pelas ONGs – que contou, em alguns momentos, com o reconhecimento e apoio do Estado, sobretudo dos governos mais alinhados com o ideário dos direitos humanos, que a educação não formal para os direitos tem se firmado. Isso tem ocorrido sem prejuízo do valor jurídico formal da educação, reconhecida como direito subjetivo pela Constituição de 1988 que lhe atribui, também, finalidades compatíveis com a democracia e a cidadania:

 

Art. 205- A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida em colaboração com a sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

 

A Constituição estabelece, ainda, princípios para o ensino dentre os quais destacam-se a IGUALDADE, a LIBERDADE, a TOLERÂNCIA e a PLURALIDADE.

 

Já na regulamentação das normas constitucionais, a Lei 9304/96 – Diretrizes e Bases da Educação define:

Art. 1º - A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

Desta forma amplia-se o conceito de educação, cabendo nele tanto as atividades do sistema formal quanto aquelas desenvolvidas fora dele, considerando também que a educação, além de se constituir num direito humano em si mesmo, é condição indispensável para a conquista e efetivação de outros direitos.

 

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH (2013), com seus desdobramentos nos estados, requer compromisso do Poder Público em investir na construção de uma cultura de respeito à dignidade da pessoa e na paz. E este Plano prevê e valoriza a educação não formal para os direitos humanos até porque o investimento na educação informal, com essas características, tem funcionado também como mecanismo de compensação pelo histórico fracasso da escola pública.

 

"A escola informal influencia na minha vida a partir do momento em que percebo a lacuna deixada pela escola formal que não cumpre seu papel como instrumento educador, formador de cidadãos (as). Minha sala de aula se dá no momento em que me envolvo no movimento social que me oportunizou conhecer, entre diversos grupos, a grande diversidade dos mesmos. Com os cursos, palestras, oficinas, seminários entre outros, foi possível o despertar de uma consciência crítica, analítica, para um crescimento intelectual e o resgate da minha identidade e da minha história.

Tudo isso serve como instrumento para buscar novos caminhos que processem a transformação de uma sociedade que se alimenta da desigualdade social, do racismo e da miséria de um povo que construiu este país.”

Raimunda Oliveira de Souza –

militante do movimento social e mediadora popular do Juspopuli.

 

É, portanto, pacífico o reconhecimento de que A RELAÇÃO DE ENSINO- APRENDIZAGEM pode ser, em determinadas situações, construída FORA DOS SISTEMAS FORMAIS, tendo como horizonte a transformação social para a inclusão, a participação política, o fortalecimento da CIDADANIA E conseqüentemente a EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS. E é assim que se pretende caracterizar aqui a educação jurídica e popular para os direitos humanos.

 

"A educação em direitos humanos parte de três pontos essenciais: primeiro é uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma educação necessariamente voltada para a mudança e, terceiro, é uma inclusão de valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente transmissora de conhecimento”

Maria Victória Benevides,

em Seminário de Educação em Direitos Humanos – São Paulo, 2002.

 

A tarefa dos que integram os movimentos sociais, as ONGs, os meios de comunicação, e o Poder Público no exercício de funções relacionadas com saúde, segurança, proteção ao meio ambiente, etc. pode, também, se constituir em relação de ensino-aprendizagem voltada para a construção de uma cultura de direitos humanos se nessa relação estiverem presentes, dentre outros valores, a IGUALDADE na DIVERSIDADE, a DEMOCRACIA REAL, a SOLIDARIEDADE.

 

A mais simples prestação de um serviço pode, assim, se transformar em oportunidade pedagógica quando o prestador demonstra, na sua postura e nas suas ações, o respeito pela dignidade do outro, independente de quem ele seja. E assim também se educa, como nos lembra Perez Aguirre ao afirmar que educamos mais com o que somos do que com o que dizemos.

 

Além de se configurar como um segmento da educação não formal para os direitos humanos, a educação jurídica popular propõe-se, sempre, a democratizar o conhecimento sobre o Direito, construindo a necessária e acessível compreensão sobre sua lógica de funcionamento, com a tradução e simplificação da linguagem convencionalmente utilizada na doutrina, na legislação e nas decisões judiciais.

 

Obviamente essa desmistificação e simplificação pressupõem o conhecimento jurídico sistemático e formal. E por isso o reconhecimento do DIREITO, como instrumento fundamental para a cidadania, é pressuposto para uma análise crítica e construtiva de sua função social, o que requer abordagens sobre sua história, características, formas de expressão (especialmente norma e ordenamento) exigibilidade de direitos e sistema de garantias, com ênfase nas instituições e mecanismos de acesso à justiça.

 

Os instrumentos utilizáveis pelo cidadão nas relações sociais e com instituições públicas - contratos, petições, requerimentos, inclusive o Habeas Corpus - são conteúdos importantes na formação jurídico-popular e devem se constituir em objeto de análise e exercícios de aplicação

 

Os objetivos da educação jurídica popular – de acordo com o Plano Nacional de Educação para os Direitos Humanos - PNEDH podem ser assim resumidos:

 

- Contribuir para a formação da cidadania

 

- Qualificar para o trabalho

 

- Promover a adoção de práticas voltadas para a convivência social sustentável, prevenindo a violência

 

É importante ainda salientar que experiências não formais de educação em direitos, embora em sua maioria empreendidas por organizações não governamentais, podem ter agentes públicos como destinatários privilegiados. São referenciais, neste sentido, projetos voltados para professores, policiais, agentes de saúde, conselheiros de direitos e tutelares, desenvolvidos por organizações como Projeto Axé, Juspopuli, AATR, o CRIA, o CEDECA, o GAPA, todas eles na Bahia.

"Percebi o quanto era preconceituoso. E mais, o quanto necessito aprender a ouvir e ser tolerante”. Soldado PM em curso de direitos humanos – Projeto Axé, 1998.

"...o curso mudou minha visão com relação ao usuário de drogas, aos que vivem em condições marginais, que não possuem laços familiares e sociais como eu. Não posso ver o marginal apenas como um marginal, antes de tudo ele é um ser humano”. Soldado PM em curso de direitos humanos promovido pelo Projeto Axé, 1998

 

 

ESTRATÉGIAS:

 

A educação jurídica para direitos humanos, nos termos aqui postos e para que cumpra seus objetivos, deve se aproximar das comunidades populares, o que não significa reforçar o distanciamento e a exclusão dessas comunidades em relação aos centros "desenvolvidos”. Descentralização e territorialização são estratégias utilizadas em experiências bem sucedidas, nessa linha de atuação, como os círculos de cultura de Paulo Freire e o Bairro Adentro da Venezuela.

 

A composição de grupos de educandos/participantes, considerando a possibilidade de sua organização em rede, é também uma estratégia importante quando se pretende assegurar desdobramento do processo educativo para a cidadania. Significa criar oportunidade para que educadores, policiais, agentes de saúde, líderes comunitários possam, de forma ética, sistemática e protegida, discutir as questões sociais que lhes dizem respeito com a mediação de profissionais das diversas áreas do conhecimento ligadas a essas questões.

 

Estratégico é também o discurso eficaz, principalmente quando se trata da comunicação jurídica. É fundamental a utilização de linguagem compatível com a compreensão geral, sem subestima da capacidade dos participantes. Mas garantir a correção, a precisão ou mesmo a elegância do estilo não significa utilizar termos incompreensíveis que mais servem para impressionar do que para comunicar.

 

A valorização da estética, compreendida na transcendência, na beleza, na presença da arte (considerando dimensões racional e poética – simbólica – mágica – mítica, como preconiza o PNEDH); é , ainda, uma estratégia de reconhecimento da sensibilidade que contribui decisivamente para os resultados de educação jurídica.

 

Meios e mídias – tradicionais e comunitárias - que ampliem o sentido da educação para os direitos para além do alcance possível através dos cursos, seminários e outros eventos formativos são fatores decisivos para a constituição de uma efetiva polítrica de educação informal para os direitos.

 

METODOLOGIAS

São orientações metodológicas usualmente seguidas pelas experiências mais exitosas em educação para os direitos humanos

- reconhecimento do saber prévio - significa admitir que existe conhecimento anterior aos processos educativos aqui referidos e que é necessário respeitar os repertórios culturais dos indivíduos e grupos com os quais trabalhamos, ainda que a intenção seja de construção de um tipo de cultura;

 

- dialogicidade – os processos formativos para os direitos humanos requerem diálogo permanente sendo, portanto, preferenciais as estruturas de formação que deixem abertas as possibilidades de questionamentos, comentários e outras contribuições, sem prejuízo da qualidade e do volume dos conteúdos e os grupos se constituem em espaços privilegiados para as manifestações. É a partir daí que se pode garantir a reflexão e a construção conjunta do conhecimento pretendido.

- dialética – a dialogicidade já traz em si o movimento das idéias, crenças, posições, expondo contradições, conflitos e convergências de modo a favorecer a busca de sínteses e a aproximação da verdade de forma dialética

- ludicidade – nesta, como em qualquer outra atividade formativa, é recomendável que estejam presentes as possibilidades de prazer, de divertimento, de alegria que podem estar em todo o processo e ser, inclusive, planejadas com filmes, jogos, trabalhos em grupos etc.

- relação entre conteúdos trabalhados e realidade – é importante planejar, executar e avaliar os processos formativos associando sempre os conteúdos às necessidades e interesses dos participantes, dosando as abordagens teóricas e associando-as às realidades conhecidas por todos;

 

- equilíbrio e utilidade do material bibliográfico – o conhecimento prévio dos grupos de formação permitirá a identificação dos interesses para escolha de material de apoio e ampliação do conhecimento que se pretende construir;

 

 

- conforto material possível – a atenção para as condições materiais de aeração, iluminação, relativa privacidade, espaços para constituição de grupos, serviços de alimentação que podem se converter em oportunidades de convivência e prazer.

 

Resta a referência ao, mais importante recurso no processo da educação jurídica e popular , o EDUCADOR, de quem se espera: competência no sentido de saber fazer bem, de comprometer-se com os resultados; o conhecimento que requer saber teórico mas vai além dele para alcançar as realidades; a legitimidade como reconhecimento e respeito por parte dos participantes e, sobretudo, COERÊNCIA entre o que diz e o que faz. Afinal:

 

"educar para os direitos humanos supões transcender a mera transmissão verbal e passar a fazer.........não educamos com o que sabemos e sim com o que somos”.

Carta aberta de Perez Aguirre a Margarida Genevois



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